Ouvir "Crônica 01: Cadeia Alimentar"
Sinopse do Episódio
Cadeia alimentar
Thiago Lucarini
Estava eu com vontade de comer peixe. Cansado dos mercados e seus frescos ou enlatados prontos para consumo, fui a uma venda de peixes vivos. No tanque, escolhi do cativeiro aquele que mais me agradou, o vendedor, um rapazote, o pegou com uma rede e rapidamente lhe deu um golpe com uma ferramenta de claro uso em abate, da qual, desconheço o nome. Naquele instante, pensei que meu jantar tinha ido por água abaixo, pois um grande remorso me invadiu. De forma planejada, contribuí com a morte de um ser. Silenciosos, peguei meu pacote e fui embora. O peixe nos seus últimos suspiros pulava na sacola, movimentos involuntários de resistência, porém não existia firme linha para se segurar, se livrar da panela. Meu coração igualmente pulava, eu sabia da necessidade, um só haveria de viver.
Em casa, me apressei a arrumá-lo, escamar, estripar e todo o restante do processo. Eu sentia-me um pleno maníaco assassino com a mão num corpo de água tão frio. A vida rápida e pronta do cotidiano dos açougues e ilhas de congelados nos tiraram o horror da morte de outros seres com intuito de sobrevivência própria. O peixe com seus espasmos involuntários insistia em algo que não tinha mais volta, já estava morto, e contraditoriamente, o corpo recusava-se de algum jeito a deixar a alma ir totalmente. Sem eu perceber, levei meu dedo à boca espasmódica do falecido que muito do vingativo me mordeu. Quase xinguei, contudo, não o fiz, pois sentia-me merecedor de tal punição do morto.
Em meio a dor e frustração, percebi o quanto sou grato pelo tempo em que vivo. Deus me livre ser preciso eu matar uma vaca, um porco, uma galinha ou outro peixe. Estou seguro, uma vez que não preciso sair à caça todos os dias, ter que matar consciente e regularmente. Gosto da morte que não suja as minhas mãos, da ilusão dos pedaços fatiados e pendurados em ganchos, que não confessam qualquer traço de vida escondida ou preexistente. Já abatidos é mais fácil ignorar sua história, sua dor, e isso, egoistamente, me basta, posto que asseguram a minha sensação de inocência. Matar para comer é necessidade, mas ter essa experiência, assim, nascida de um simples desejo para o jantar é amedrontador, é confirmar o que sabemos desde sempre: a vida sustenta-se sobre os ossos dos mortos. É questão de tempo até eu ser o abatido, ser comida da natureza. Parte do ciclo em contínuo processo.
De volta ao conforto e comodidade, meus incapacitantes naturais, olhei o peixe pronto na panela. Estava com uma cara maravilhosa. Se o comi? Claro! Custou caro. Em mim não restava qualquer lembrança do prévio remorso. Não há moralidade na fome. Acabou que o peixe rendeu não só um prato delicioso como uma crônica de brinde.
Thiago Lucarini
Estava eu com vontade de comer peixe. Cansado dos mercados e seus frescos ou enlatados prontos para consumo, fui a uma venda de peixes vivos. No tanque, escolhi do cativeiro aquele que mais me agradou, o vendedor, um rapazote, o pegou com uma rede e rapidamente lhe deu um golpe com uma ferramenta de claro uso em abate, da qual, desconheço o nome. Naquele instante, pensei que meu jantar tinha ido por água abaixo, pois um grande remorso me invadiu. De forma planejada, contribuí com a morte de um ser. Silenciosos, peguei meu pacote e fui embora. O peixe nos seus últimos suspiros pulava na sacola, movimentos involuntários de resistência, porém não existia firme linha para se segurar, se livrar da panela. Meu coração igualmente pulava, eu sabia da necessidade, um só haveria de viver.
Em casa, me apressei a arrumá-lo, escamar, estripar e todo o restante do processo. Eu sentia-me um pleno maníaco assassino com a mão num corpo de água tão frio. A vida rápida e pronta do cotidiano dos açougues e ilhas de congelados nos tiraram o horror da morte de outros seres com intuito de sobrevivência própria. O peixe com seus espasmos involuntários insistia em algo que não tinha mais volta, já estava morto, e contraditoriamente, o corpo recusava-se de algum jeito a deixar a alma ir totalmente. Sem eu perceber, levei meu dedo à boca espasmódica do falecido que muito do vingativo me mordeu. Quase xinguei, contudo, não o fiz, pois sentia-me merecedor de tal punição do morto.
Em meio a dor e frustração, percebi o quanto sou grato pelo tempo em que vivo. Deus me livre ser preciso eu matar uma vaca, um porco, uma galinha ou outro peixe. Estou seguro, uma vez que não preciso sair à caça todos os dias, ter que matar consciente e regularmente. Gosto da morte que não suja as minhas mãos, da ilusão dos pedaços fatiados e pendurados em ganchos, que não confessam qualquer traço de vida escondida ou preexistente. Já abatidos é mais fácil ignorar sua história, sua dor, e isso, egoistamente, me basta, posto que asseguram a minha sensação de inocência. Matar para comer é necessidade, mas ter essa experiência, assim, nascida de um simples desejo para o jantar é amedrontador, é confirmar o que sabemos desde sempre: a vida sustenta-se sobre os ossos dos mortos. É questão de tempo até eu ser o abatido, ser comida da natureza. Parte do ciclo em contínuo processo.
De volta ao conforto e comodidade, meus incapacitantes naturais, olhei o peixe pronto na panela. Estava com uma cara maravilhosa. Se o comi? Claro! Custou caro. Em mim não restava qualquer lembrança do prévio remorso. Não há moralidade na fome. Acabou que o peixe rendeu não só um prato delicioso como uma crônica de brinde.
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