2 - Perdigotos

03/05/2020 4 min Temporada 1 Episodio 2

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Sinopse do Episódio

Notas de um presente distópico
Perdigotos
Perdigoto: filhote de perdiz. gotícula de saliva que alguém lança ao falar. origem. latim. Perdicottus
Espirro: expulsão reflexa, brusca e sonora do ar pelo nariz e pela boca, provocada por irritação da mucosa nasal; esternutacão; jato, esguicho, borrifo.
Tosse: expiração brusca e barulhenta, involuntária ou voluntário, de ar contido nos pulmões.
A tosse elimina cerca de 6 miligramas de gotículas de saliva, e quase um litro e meio de ar a uma velocidade média de 80 km/h. O centro cerebral que comanda a tosse é próximo ao do vômito, motivo pelo qual não raramente vomitamos durante um acesso de tosse.
Esse episódio é inspirado numa fotografia do repórter-fotográfico Joédson Alves, da agência de notícias espanhola EFE. Acidentalmente, Joédson capturou a imagem de um punhado de perdigotos tentando escapar de uma boca.
O desespero dos perdigotos era evidente. Eles saltavam para o vazio, tentando se distanciar o máximo possível do hospedeiro.
Foi uma ação ousada, pois um erro de cálculo poderia significar o fim dos perdigotos, cujos cadáveres ficariam estatelados no asfalto quente de Brasília, lembrando música e texto de autores consagrados: ficaria lá o corpo estendido no chão observado pelo zé ninguém.
A presença de uma claque a poucos metros da fossa presidencial, no entanto, impediu o salto no vazio e garantiu aos perdigotos a posse de novos hospedeiros.
O flagrante da fuga perdigota ficou eternizado naquela imagem, com "seus mesmos tristes velhos fatos que num álbum de retratos" teimamos "em colecionar".
A louca escapada dos perdigotos talvez mereça entrar na categoria do "instante decisivo", conceito criado pelo fotógrafo francês Henri Cartier Bresson. O instante decisivo acontece em uma fotografia quando elementos visuais e emocionais se unem em perfeita harmonia e expressam a essência da situação presenciada pelo fotógrafo.
A discussão é grande no mundo da fotografia. Fica a dúvida se o conceito se aplica apenas quando o fotógrafo aguarda o instante decisivo para registrar a imagem ou se também vale para algo que se percebe apenas depois que a foto nos é revelada.
Numa entrevista que me deu recentemente sobre a foto, Joédson informa que não teve a intenção de fotografar perdigotos em fuga. Só percebeu quando transferiu os dados do cartão de memória da câmera para o computador e foi editar o material.
Mas talvez isso agora não faça diferença. Como não existe um registro fotográfico ou microscópico do instante decisivo em que integrantes da família COVID-19 saltaram de algum animal para o ser humano, temos agora, mesmo que de maneira involuntária, o registro de um instante decisivo distópico. O momento exato em que perdigotos que carregavam o coronavírus fogem horrorizados de um hospedeiro.
A imagem registra o início do salto, mas não mostra onde e nem em quem os perdigotos pousaram. Mas isso também pouco importa, pois, este é apenas o relato de um presente distópico que permite tomar emprestadas e adaptar as linhas finais do romance A revolução dos bichos, de George Orwell: as criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco.
No nosso presente distópico, já não é possível distinguir um perdigoto de outro.
Talvez eu volte. Um dia eu volto.

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