02 Texto curatorial

24/02/2024 7 min
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Sinopse do Episódio

A Sombra e o SamuraiAilton Krenak – curadorNagakura-san é um samurai. Sua espada é uma câmera que ele maneja com asegurança de quem já passou por campos de refugiados e esteve no centro das praçasde guerra, por lugares como África do Sul, Palestina, El Salvador e Afeganistão.No Afeganistão, antes da chegada do Talibã, registrou a entrada vitoriosa do grandelíder popular Massoud em Cabul. Massoud, aquele chefe tribal que organizou aresistência nacional para expulsar os russos na década de 1990 e que foi assassinadopelos Estados Unidos da América 2 dias antes do atentado de 11 de setembro de 2001.Nagakura-san acompanhou na África do Sul desde a libertação de Mandela até aderrubada do apartheid com reportagens que eternizaram a década de 1990 como umdivisor de épocas.Depois desse mergulho no inferno global, quando sentiu de perto a loucura dos sereshumanos, o samurai da câmera descobriu a floresta amazônica e seus povos nativos.Fui seu guia nessa entrada na floresta, um presente que a vida nos concedeu. Nós dois tínhamos a mesma idade, assim como nosso amigo Massoud. Nagakura-san tomouisso como motivo para criar um projeto de documentários simultâneos em trêscontinentes: América Latina, África e Ásia.Entrava abrindo caminhos com sua câmera, e nas viagens de fechamento dosdocumentários trazia com ele um diretor e um cameraman da emissora de televisãojaponesa NHK que faziam matérias de apresentação temática para o público japonês.Seres Humanos foi o título de seu primeiro livro publicado no Japão com a série dereportagens feitas entre 1994 e 1996, antecedido de publicações nos jornais e revistas,com repercussão em todo o país, claro. Pois Nagakura-san é fotógrafo de umcontinente, como nosso Sebastião Salgado. Pois não encontro melhor semelhança paraindicar a importância de seu trabalho além desta comparação simplista entre as duaspersonalidades engajadas, sempre surfando na crista do perigo e antenadas com asquestões mais vibrantes do planeta: seres humanos e natureza.Esses dois assuntos são um mesmo e eterno problema na lente desse samurai queaceitou ser minha sombra por 4 anos seguidos, em sete viagens pela Amazônia,algumas durando até 40 dias. Passando por lugares onde somente os indígenasandaram antes dele, cobrindo conflitos de terra, garimpagem clandestina, invasões.Além de acompanhar festas e rituais nas aldeias do Acre, Mato Grosso, Maranhão,Roraima e Amazonas.Eliza-san, este é o nome de nosso anjo nissei que fez as vezes de intérprete para todas as nossas entrevistas, dezenas de horas em barcos, canoas, beiras de rios, barrancos e terreiros das aldeias. Lá na fronteira do Brasil com a Guiana Inglesa, no alto rio Juruá, divisa com o Peru, no cerradão do Mato Grosso, nas aldeias Xavante, além do rio das Mortes. Por todos esses lugares, juntos, nunca dispensamos essa valente e discreta companhia sempre pronta para uma conversa com pelo menos três falantes de línguas estranhas entre si. Eu não falo nem entendo japonês. Nagakura-san, nada de português. Eliza Otsuka foi a nossa salvação.Nossas viagens foram registradas em livros, exposições e documentários para a NHK,canal aberto para milhões de pessoas. O livro Seres Humanos – Amazônia, lançado em1998 em Tóquio, teve enorme repercussão e foi seguido de duas exposições e exibiçãoem programas na TV com muita mídia voluntária, abrindo espaço para oreconhecimento do Brasil, Amazônia e povos indígenas por 2 semanas seguidas noJapão. Acompanhei, como convidado especial, Hiromi Nagakura em programas ao vivona TV em horário nobre, antecedido por fala de fim de ano do imperador. Não foipouca coisa o impacto dessas exposições e livros-reportagens para a formação de umaopinião pública esclarecida sobre a realidade dos Yanomami e Xavante, e da Amazôniamesma. Afinal, nós andamos por dezenas de aldeias nas cabeceiras dos rios Juruá,Negro e Demeni, Tarauacá e rio Gregório, além de cortar estradas pelo cerrado eregiões de florestas onde a vida continua vibrante como nos primórdios da criação.E os Seres Humanos ainda dançam para o sol do meio-dia, cantam para encerrar o diae brincam na chuva como crianças felizes com a vida.Subimos por rios indígenas, seguindo de canoa, a pé pelas trilhas ou em voos depequenos aviões que descem e decolam de clareiras na floresta menores que umaquadra de futebol.Nagakura-san foi a minha “sombra que anda” por quase 5 anos, de 1993 a 1998, emduas viagens por ano, visitando mais de uma vez todas as aldeias de nossos amigosque viveram junto com a gente esses tempos de aventura e coragem.Aventura que começamos numa conversa, sentados em esteiras, na sede da Aliançados Povos da Floresta, no bairro do Butantã, em São Paulo, onde Eliza-san meapresentou o plano de viagens do samurai Nagakura e resumiu com estas palavras oconceito todo do projeto para alguns anos dali pra frente: “ele vai ser a sua sombra por onde você for, quando estiver dormindo e quando estiver acordado...”.Fiquei um pouco incomodado, mas vi que era coisa de samurai e topei. Esta históriatoda está reunida em um dos livros que mais aprecio sem nunca ter conseguido leruma única linha, escrito em nihongo e publicado pela editora Tokuma, de Tóquio, em1998, intitulado Como um pássaro, como um rio, que assumi como minha biografiafeita por Hiromi Nagakura.Nagakura-san, assim como eu, teve duras travessias ao longo das décadas queseparam o nosso último encontro, no final da década de 1990, e estes anos 20 doséculo XXI, com perdas incalculáveis para o mundo que compartilhamos, quando oshuman beings se afastaram do cuidado com as florestas que tanto amamos. Ficamostambém mais velhos e calejados com a luta por um mundo possível, de convivênciaentre humanos e não humanos, adentrando a realidade das mudanças climáticas,exigindo de cada um de nós mais coragem e disposição para lutar.Este ano conseguimos, enfim, reunir esforços para fazer uma celebração em tornodessa amizade alimentada pelo sonho e beleza da obra do fotógrafo Hiromi Nagakura,que segue viajando por regiões fora da cartografia ocidental, como Vietnã, Tailândia, Madagascar e Sibéria, lugares de sentido profundo para a continuidade de seu trabalho dedicado à infância em convívio com espaços onde a natureza emtransformação ainda oferta visões do paraíso na Terra.A itinerância da exposição Hiromi Nagakura até a Amazônia com AiltonKrenak, no Centro Cultural Banco do Brasil, traz algumas das belas imagensque nossas viagens às aldeias e comunidades na Amazônia brasileira, entre1993 e 1997, permitiram registrar. Momentos de intimidade e contentamentoentre “amigos para sempre” que inspiraram esta mostra fotográfica mediadapor encontros com algumas das pessoas queridas que nos receberam emsuas cozinhas e canoas, suas praias de rios e nas aldeias: Ashaninka, Xavante,Krikati, Gavião, Yawanawá, Huni Kuin e comunidades ribeirinhas no Rio Juruáe região do lavrado em Roraima.Será uma oportunidade de compartilhar memórias afetivas de encontros dos povos dafloresta com o samurai da fotografia Hiromi Nagakura.