A presença e o presente | T4 Ep5

13/10/2021 5 min Episodio 63
A presença e o presente | T4 Ep5

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Sinopse do Episódio


O que fascinava Roland Barthes numa fotografia era o facto de tudo o que se via nela ter acontecido. Corpos reais em lugares reais cumprindo ações reais num tempo e espaço reais eram capturados por olhos mecânicos e podiam ser revisitados infinitamente quando só tinham acontecido uma vez. A fotografia repete na imagem aquilo que não se pode repetir na existência. É a presença da ausência, tal como os raios de luz de estrelas há muito emitidas no universo e só agora visíveis, diria Sontag. No século que inventou ao mesmo tempo a história e a fotografia, olhava-se para uma imagem fotográfica e sabia-se que determinada realidade já tinha existido.Hoje não é bem assim. Hoje temos a manipulação da imagem e a sua transmissão e difusão em direto e em diferido, dentro e fora de contexto. Hoje temos o Deep Fake e a rede de histórias quotidianas que descrevem os nossos dias resulta da compra, venda, montagem e colagem de bocados de imagens, umas reais outras fabricadas, histórias que nos conduzem a viver por vezes mais do que uma vida em paralelo: a que o corpo sente e se obriga, voluntária ou involuntariamente, e a que construímos para nos mostrarmos aos outros.Foi num tempo que tem na fotografia múltiplas realidades existentes e não existentes que uma pandemia ceifou a presença imediata nos palcos um pouco por todo o globo. E foi nesse mesmo contexto que Marco Martins convocou a fotografia enquanto memória e como presença de uma realidade só que já existiu (bem ao jeito de Roland Barthes em Câmara Clara) e criou a instalação “Natureza Fantasma” para a Companhia Maior.  A Companhia Maior é um projeto de artes performativas desenvolvido por artistas séniores e que, anualmente, desde 2010, convida um artista ou um coletivo por ano a criar uma obra original  — Pedro Penim, Jorge de Andrade, Sofia Dias e Vítor Roriz, Mónica Calle, Joana Craveiro ou Tiago Rodrigues foram já alguns dos artistas convidados.Em 2020 o convite foi endereçado a Marco Martins. E em março do mesmo ano, uma pandemia pôs em causa a natureza dos espetáculos ao vivo e considerou a maior idade um grupo de alto risco. As impossibilidades pareciam muitas e pertinentes, mas as questões que o projeto levantava, exigiam respostas mais urgentes: Que sociedade é esta que isola os mais velhos? Em que sociedade nos tornamos quando deixamos de velar os mortos? O que somos quando aceitamos a suspensão do tempo para que o tempo passe sem nós? E que espectáculo se pode fazer para continuar a convocar a presença no tempo presente? Até onde vai o compromisso, até onde pode ir a transformação de um objecto sem desvirtuar a vontade e a paixão que o originaram?Marco Martins decide conversar. Decide descobrir e pensar as realidades de cada um dos seus intérpretes através de velhos álbuns de fotografias de família. Inicia um processo de combustão entre as histórias que ouve e as fotografias que todos podemos ver. Marco Martins converte memórias privadas em fantasmas coletivos e descobre o ouro indispensável de que as artes vivas são feitas: A presença no presente. A confusão, neste caso necessária, entre o Real e o Vivo. Através da emoção, da recordação e do encontro: com o passado, com os outros e com que ainda está para vir.Afinal, ainda há muitas maneiras de se habitar um espaço que reclama distância. Há muitas formas de estarmos colados uns aos outros por corpos intangíveis e no entanto muito reais. A fotografia e a imagem em movimento são um encontro com esses corpos.Tal como Roland Barthes olhava uma fotografia de 1852 do irmão mais novo de Napoleão e se deslumbrava com a ideia daquele olhar já ter olhado para o Imperador, também nós em “Natureza Fantasma” olhamos para pessoas que já olharam para os intérpretes e criadores desta peça, que já conviveram ou ainda convivem com quem tem agora voz nesta instalação.Ou seja, Marco Martins reinventa a presença no teatro convocando a sua mais antiga missão: o ritual de passagem entre a vida e a morte através da convocação da presença dos nossos fantasmas. E tudo isto perante a ausência de um tempo de acção presente que se viveu em 2020 e 2021. Haverá algo mais crucial no Teatro do que a sua eterna relação com o culto da vida mas também da morte? Foi uma felicidade do destino ver-me atravessada no percurso desta obra que me caiu no regaço quando cheguei ao Teatro Viriato. Aquilo que começou por ser uma co-produção que previa uma companhia com duas dezenas de actores em palco, transformou-se num clássico grego com centenas de figurantes e intérpretes que transformam a garagem no piso -3 do parque de estacionamento do Forum Viseu num anfiteatro no cume de uma montanha olímpica. É lá que assistimos à história de todos nós.____Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato